sábado, 28 de abril de 2012

quinta-feira, 26 de abril de 2012

 

animal encontrado hoje 14:47 próximo avenida são joão número 473

Sujeira na terra, perigo nos céus


Como estão presentes em quase todas as zonas urbanas do planeta - só não vivem nas regiões polares - , os pombos 
                             acabam deixando rastros nas cidades: sua urina e suas fezes, que possuem alta concentração de ácido úrico, corroem monumentos de pedra e bronze, destroem pinturas e rebocos dos prédios e das construções e


danificam estruturas de concreto e pinturas de automóveis





terça-feira, 24 de abril de 2012


BANDO
multidão – transformação – conecção – singularidade – instintivo – ativo – devir expansão – epidemia – contágio – poroso – mutável – fluxos – marginal – violento – infinito – intenso – sobrevivente – não quer dizer, é – lugar de comunicação – comum – jogo – dissimetria – animal – transgressor – convulsão – resistente – ético – pulso
"Onde quer que estejamos, o que quer que ouçamos, é ruído. Quando nós o ignoramos, ele nos atrapalha. Quando o ouvimos, achamo-lo fascinante. O som de um caminhão de 50 cavalos de força estática entre estações. Chuva. Queremos capturar e controlar esses sons, usá-los, não como efeitos de som, mas como sons de efeitos musicais." John Cage.

Me lembrou a idéia do João, da última reunião, de captarmos o audio das nossas vozes durante nossos ensaios como material bruto que pode ser usado mais pra frente.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

“Composição urbana” parte do princípio de que a arte não intervém nem interfere na cidade – ela compõe. E, em compondo, também decompõe. (Sobre o trabalho de Bia Medeiros)
http://www.funarte.gov.br/artes-visuais/corpos-informaticos-realiza-mostra-na-funarte-sao-paulo/

domingo, 22 de abril de 2012

recortes do texto do pelbart

num plano de composição, trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estados e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e a fetos. é um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. num plano de composição o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados, e também como favorece acontecimentos múltiplos.

excomungar aquele que pretende falar em nome de todos, ou se crê representante de uma totalidade que, justamente, cabe a todo custo evitar.

negri: multidão é o contrário de massa. a multidão é uma certa dinâmica entre o comum e o singular, a multiplicidade e a variação, a potência desmedida e o poder soberano que tenta contê-la, regulá-la ou modulá-la - e talvez um grupo de teatro, de performance, de intervenção pudesse ser considerado sob a mesma lógica, nessa dinâmica entre o comum e o singular, a composição e a consistência, o acontecimento e a subjetividade.

blanchot: na comunidade não se trata mais de uma relação de MESMO com o MESMO, mas de uma relação na qual intervém o OUTRO, e ele é sempre irredutível, sempre em dissemetria, ele introduz a dissemetria.

deleuze: o que resta às almas quando não se aferram mais a particularidades, o que as impede então de fundir-se num todo? Resta-lhes precisamente sua "originalidade", quer dizer, um som que cada um emite quando põe o pé na estrada, quando leva a vida sem buscar a salvação, quando empreende sua viagem encarnada sem objetivo particular e então encontra outro viajante a quem reconhece pelo som.

lawrence: contra a moral européia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que a alma só se realiza pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios.

da série despelando a cidade:



despelando a cidade
arrancar o concreto
respirar
tapar
a conter cimentos
Referências importante para este momento do trabalho:

Encarnado  e Pororoca de Lia Rodrigues

Elementos para uma cartografia da grupalidade.

Peter PelBart

Poderíamos partir de Espinosa, o príncipe dos filósofos. E começar pelo mais elementar. O que é um indivíduo? Espinosa responde: um indivíduo se define pelo seu grau de potência. Cada um de nós tem um grau de potência singular, o meu é um, o seu é outro, o dele é outro. Mas o que é um grau de potência? É um certo poder de afetar e de ser afetado. Cada um de nós tem um certo poder de afetar e de ser afetado. O poder de ser afetado de um burocrata, basta ler Kafka para ter uma idéia claríssima. E a capacidade de ser afetado e de afetar de um artista, qual é? Será que a de um dançarino é a mesma que a de um ator, ou de um político? Será que a de um acrobata é a mesma que a do jejuador? De novo Kafka, vejam-se aqueles pequenos contos sobre artistas, em O Artista da Fome, por exemplo. Mas Gilles Deleuze gosta de dar o exemplo do carrapato, que preenche o seu poder de ser afetado pelos três elementos, a luz, o cheiro, o sangue. Ele procura o lugar mais alto da árvore em busca da luz, depois pode ficar um tempo longuíssimo na espera jejuante em meio à floresta imensa e silenciosa, e quando sente o cheiro do mamífero passando, ploft, deixa-se cair, para depois se enfiar na pele do animal atrás de sangue. Então o que é um carrapato? Ora, é um grau de potência. É um certo poder de ser afetado. Um carrapato se define, em última instância, por esses três afetos. Como fazer a cartografia de nossos afetos? Como mapear “etologicamente” os afetos de um indivíduo, seja ele um carrapato, seja uma pessoa? Ou de um grupo, ou de um movimento?

Então somos um grau de potência, definido pelo poder de afetar e ser afetado. Mas jamais sabemos de antemão qual é nossa potência, de que afetos somos capazes. É sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa, só o descobriremos no decorrer da existência. Ao sabor dos encontros. Só através dos encontros aprendemos a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui. Um bom encontro é aquele pelo qual meu corpo se compõe com aquilo que lhe convém,
um encontro pelo qual aumenta sua força de existir, sua potência de agir, sua alegria. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros, e a compor, é uma grande arte, essa da composição, da seleção dos bons encontros. Com que elementos, matérias, indivíduos, grupos, idéias, minha potência se compõe para formar uma potência maior e que resulta numa alegria maior? E, ao contrário, o que tende a diminuir minha potência, meu poder de afetar e ser afetado, o que provoca em mim tristeza? O que é aquilo que me separa de minha força? A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir. Isso abre para um problema ético e político importante: como é que aqueles que detêm o poder fazem questão de nos afetar de tristeza? As paixões tristes como necessárias ao exercício do poder. Inspirar paixões tristes – é a relação necessária que impõem o sacerdote, o déspota, inspirar tristeza em seus sujeitos, torná-los impotentes, privá-los da força de existir. A tristeza não é algo vago, é a diminuição da potência de agir. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois pólos, essas subidas e descidas, elevações e quedas.

Então, como preencher o poder de afetar e ser afetado que nos corresponde? Por exemplo, podemos apenas ser afetados pelas coisas que nos rodeiam, nos encontros que temos ao sabor do acaso, podemos ficar à mercê deles, passivamente, e, portanto, ter apenas paixões. E, pior, esses encontros podem apenas ser maus encontros, que nos dão paixões tristes, ódio, inveja, ressentimento, humilhação, com o que se vê diminuída nossa força de existir, com o que nos vemos separados de nossa potência de agir. Ora, poucos filósofos combateram tão ardentemente o culto das paixões tristes. O que Espinosa quer dizer é que as paixões não são um problema, elas existem e são inevitáveis, não são boas nem ruins, são necessárias no encontro dos corpos e nos encontros das idéias. O que, sim, em certa medida, é evitável são as paixões tristes que nos escravizam à impotência. Em outros termos, as paixões alegres nos aproximam daquele ponto de conversão em que podemos deixar de apenas padecer, para podermos agir; deixar de ter apenas paixões, para podermos ter ações, para podermos desdobrar nossa potência de agir, nosso poder de afetar, nosso poder de sermos a causa direta das nossas ações; e não de obedecermos sempre a causas externas, padecendo delas, estando sempre à mercê delas. Como vocês já perceberam, estou num vôo livre e supersônico em Espinosa, com pitadas de Deleuze, para nossos propósitos específicos.

Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemão de que afetos é capaz, não sabe ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de experimentação, mas também de prudência. É essa a interpretação etológica de Deleuze: a ética seria um estudo das composições, da composição entre relações, da composição entre poderes, dos modos de existência em que resulta tal ou qual composição. Não se trata de seguir nenhum mandamento, cartilha prévia, ou receita, mas de avaliar as maneiras de vida que resultam desta ou daquela composição, deste ou daquele encontro, desta ou daquela afetação. Se o indivíduo se define pelo poder de afetar e ser afetado, de compor-se, a questão se amplia necessariamente para além dele, e concerne ao leque de seus encontros. Como as relações podem compor-se para formar uma nova relação mais “estendida”, ou como os poderes de afetar e de ser afetado podem se compor de modo a constituir um poder mais intenso, uma potência mais “intensa”. Trata-se então, diz Deleuze, das “sociabilidades e comunidades”. E ele chega a perguntar: “Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode tomar um outro no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios?”. É uma pergunta crucial, não só para quem trabalha em grupo, mas na vida em geral. Como um ser pode compor-se com outro, tomá-lo no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios desse outro? Como se pudessem coexistir vários mundos, mesmo no interior de uma composição maior, sem que sejam todos reduzidos a um mesmo e único mundo. A partir daí, pode-se pensar a constituição de um “corpo” múltiplo. Por exemplo, um coletivo seria isso, um corpo múltiplo, composto de vários indivíduos, com suas relações específicas de velocidade e de lentidão. Um coletivo poderia ser pensado como essa variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, em certa composição de velocidade e lentidão.

Mas como pensar a consistência desse “conjunto” composto de singularidades, de multiplicidade, de elementos heterogêneos? Gilles Deleuze e Félix Guattari invocam com freqüência um “plano de consistência”, um “plano de composição”, um “plano de imanência”. Num plano de composição, trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afetos. É um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. Num plano de composição o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados, e também como favorece acontecimentos múltiplos.

Como mostra a conclusão praticamente ininteligível de Mil Platôs, o que se inscreve num plano de composição são os acontecimentos, as transformações incorporais, as essências nômades, as variações intensivas, os devires, os espaços lisos – é sempre um corpo sem órgãos. Em todo caso, há aqui uma condição que serve para pensar o plano
micropolítico ou macropolítico, e que parece uma fórmula matemática: o n-1. O que significa essa fórmula esquisita?
Apenas isto: dada uma multiplicidade qualquer, um conjunto de indivíduos, ou singularidades, ou afetos, como produzir esse plano de consistência sem subsumir essa heterogeneidade a uma unidade qualquer? Ou seja, o desafio consiste nisto: mergulhados numa multiplicidade qualquer, que faz um plano de composição, esconjurar aquele Um que pretende unificar o conjunto ou falar em nome dessa multiplicidade, seja esse um o papa, um governante, o diretor, uma ideologia, um afeto predominante. Trata-se de recusar o império do Um. É uma filosofia da diferença, da multiplicidade, da singularidade, o que não significa o Caos, a indiferenciação, o vale-tudo, mas justamente o contrário, a afetação, a composição, uma espécie de construtivismo, em que a regra única, além de toda essa química dos encontros e da consistência, é excomungar aquele que pretende falar em nome de todos, ou se crê representante de uma totalidade que, justamente, cabe a todo custo evitar.

Eu gostaria de abordar um outro tópico, a questão do comum, tão importante quando se considera um grupo, uma sociedade, um conjunto humano. Uma constatação trivial é evocada com insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Toni Negri, Giorgio Agamben, Paolo Virno, Jean-Luc Nancy, ou mesmo Maurice Blanchot. Asaber, a de que vivemos hoje uma crise do “comum”. As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mesmo a espetacularidade cultural, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a “vida” supostamente “comum”, ou, mais precisamente, para defender uma forma de vida dita “comum”. No entanto, sabemos bem que essa “vida” ou “forma de vida” não é realmente “comum”, que quando compartilhamos esses consensos, guerras, pânicos, circos políticos, e modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro, o seqüestro do comum.

Se de fato existe hoje um seqüestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do “comum” começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro. Num outro contexto, Deleuze lembra que, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são, meros clichês, os clichês da relação, do amor, do povo, da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e foi quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles para encontrar aquilo que é “real”, na sua força de afetação, com conseqüências estéticas e políticas a determinar. É um momento paradoxal, esse em que os clichês que filtram o mundo e nos determinam o que deve ser pensado, feito, sentido, caem em descrédito. Pois eles nos conduziram a um ponto perigoso, em que já não acreditamos mais nesses clichês, e portanto não acreditamos no mundo, na sua capacidade de nos oferecer possibilidades novas. É um ponto de descrença, já não acreditamos nos possíveis, o possível parece ter-se esgotado.
Deleuze reconhece esse estado de descrença, de niilismo, de desconexão, mas jamais embarcou no discurso pós- moderno, seja de crítica e diabolização do mundo, seja de volúpia cínica com a perda do sentido.

Quando fala das artes, numa posição considerada por alguns excessivamente moderna, ou caduca, ele diz a coisa mais simples do mundo, que já Nietzsche não cansava de repetir. As artes inventam novas possibilidades de vida, e talvez caiba às artes essa incumbência rara de nos devolver a crença no mundo, neste mundo, neste presente, não crença na sua existência, de que não duvidamos, mas crença nas possibilidades deste mundo de engendrar novas formas de vida, novos modos de existência. Não se trata de uma ingenuidade pueril, nem de um otimismo cego, mas de uma avaliação concreta no mais alto grau.

O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois no seu núcleo propriamente econômico e biopolítico, a prevalência do “comum” e da “invenção”. O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum: a linguagem e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação e, por conseguinte, a inventividade. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isso a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do comum, pela vampirização do comum empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, inclusive culturais, com finalidades que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.
Em todo caso, se a linguagem, que desde Heráclito era considerada a mais comum, tornou-se hoje o cerne da própria produção, como intelecto geral, como conjunto dos cérebros em cooperação, como intelectualidade de massa, é preciso dizer que o comum contemporâneo é mais amplo do que a mera linguagem, dado o contexto da sensorialidade alargada, da circulação ininterrupta de fluxos, da sinergia coletiva, da pluralidade afetiva e da subjetividade coletiva daí resultante. Esse comum passa pelo bios social propriamente dito, pelo agenciamento vital, material e imaterial, biofísico e semiótico, que constitui hoje o núcleo da produção econômica mas também da produção de vida comum. Ou seja, é a potência de vida da multidão, sua biopotência, em seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação, como diz Maurizio Lazzarato na esteira de Gabriel Tarde, que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo.
Por isso mesmo, esse comum é visado pelas capturas e seqüestros capitalísticos, mas é esse comum igualmente que os extrapola, fugindo-lhe por todos os lados e todos os poros.

Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria anorgânica, um corpo sem órgãos, um ilimitado (apeiron) apto às individuações mais diversas. Apesar de seu uso um tanto substancializado, em alguns casos o termo “multidão” desenvolvido por Negri com base em Spinoza tenta remeter a um tal conceito.
Multidão é o contrário de massa. A massa é um compacto homogêneo, uma indiferenciação de seus componentes numa direção única, submetidos a um líder. A multidão, tal como Negri a entende, é o contrário, é essa heterogeneidade, essa inteligência coletiva, essas afetações recíprocas, essa multiplicidade subjetiva. No fundo, e é aí que eu queria chegar, a multidão é uma certa dinâmica entre o comum e o singular, a multiplicidade e a variação, a potência desmedida e o poder soberano que tenta contê-la, regulá-la ou modulá-la – e talvez um grupo de teatro, de performance, de
intervenção pudesse ser considerado sob a mesma lógica, nessa dinâmica entre o comum e o singular, a composição e a consistência, o acontecimento e a subjetividade.

No fundo, nessas composições e recomposições, trata-se sempre da experimentação imanente de um comum, de invenção de modos de vida, de uma redistribuição dos afetos, da invenção de novos possíveis. Como então pensar a comunidade, ou o grupo, ou um coletivo, não segundo o modelo da fusão, da homogeneidade, da identidade consigo mesmo, mas da heterogeneidade, da pluralidade, do jogo, até mesmo das distâncias reinventadas no seu interior? Em outras palavras, como diz Blanchot em seu livro La Communauté Inavouable, na comunidade não se trata mais de uma relação do Mesmo com o Mesmo, mas de uma relação na qual intervém o Outro, e ele é sempre irredutível, sempre em dissimetria, ele introduz a dissimetria. Como diz Bataille: “Se esse mundo não fosse constantemente percorrido pelos movimentos convulsivos dos seres que se buscam um ao outro [...], ele teria a aparência de uma derrisão oferecida àqueles que ele faz nascer”. Mas o que é esse movimento convulsivo dos seres que se buscam um ao outro? Seria o amor, como quando se diz comunidade dos amantes? Ou o desejo, conforme o assinala Negri? Ou se trata de um movimento que não suporta nenhum nome, nem amor nem desejo, mas que atrai os seres para jogá-los uns em direção aos outros, segundo seus corpos ou segundo seu coração e seu pensamento, arrebatando-os à sociedade ordinária, reinventando sua sensibilidade? Que esse tema seja mais do que uma obsessão individual de um autor, atesta-o sua presença recorrente entre pensadores dos anos 1960-1970.

Em curso ministrado no Collège de France em 1976-1977, por exemplo, Roland Barthes aborda a questão “Comment vivre-ensemble” (Como viver junto), que, em 2006, foi tema da Bienal Internacional de São Paulo. Barthes não se interessa pelo viver-a-dois conjugal, nem o viver-em-muitos segundo uma coerção coletivista, mas pelo desafio de “pôr em comum as distâncias”, “a utopia de um socialismo das distâncias”, na esteira do “pathos da distância”, evocado por Nietzsche. São novas formas de agenciamento coletivo que vão surgindo, não fusionais, mas rizomáticas. Nessa tônica, a própria resistência atualmente assume novas modalidades. Deleuze não se cansa de repetir: criar é resistir. Resistir não consiste apenas em dizer não, mas em inventar, reinventar-se, criar novos afetos, novos perceptos, novos possíveis, novas possibilidades de vida. Claro que o próprio termo criação está hoje comprometido, e inteiramente submetido aos ditames do capitalismo tardio e da sociedade de controle, com seu vampirismo insaciável, que se apossa da vitalidade social como nenhum outro regime anterior jamais havia feito. Mas ao mesmo tempo, nesse contexto, essa vitalidade acaba aparecendo naquilo que ela é, não um produto do capital, mas o patrimônio de todos e de qualquer um, a potência do homem comum. Mesmo a deserção assume novas formas.

A propósito do Bartleby, de Melville, aquele escriturário que a tudo responde que “preferiria não”, Deleuze comenta que a particularidade desse homem é que ele não tem particularidade nenhuma, é o homem qualquer, o homem sem essência, o homem que se recusa a fixar-se em alguma personalidade estável. Diferentemente do burocrata servil
(que compõe a massa nazista, por exemplo), no homem comum, tal como ele aparece aqui, se expressa algo mais do que um anonimato inexpressivo: o apelo por uma nova comunidade. Não aquela comunidade baseada na hierarquia, no paternalismo, na compaixão, como o patrão de Bartleby gostaria de lhe oferecer, mas uma sociedade de irmãos, a “comunidade dos celibatários”. Deleuze detecta entre os americanos, antes mesmo da independência, essa vocação de constituir uma sociedade de irmãos, uma federação de homens e bens, uma comunidade de indivíduos anarquistas no seio da imigração universal. A filosofia pragmatista americana, em consonância com a literatura americana que Deleuze tanto valoriza, lutará não só contra as particularidades que opõem o homem ao homem, e alimentam uma desconfiança irremediável de um contra o outro, mas também contra o seu oposto, o Universal ou o Todo, a fusão das almas em nome do grande amor ou da caridade, a alma coletiva em nome da qual falaram os inquisidores, como na famosa passagem de Dostoievski, e, por vezes, sim, os revolucionários.

Deleuze pergunta, então: o que resta às almas quando não se aferram mais a particularidades, o que as impede então de fundir-se num todo? Resta-lhes precisamente sua “originalidade”, quer dizer, um som que cada uma emite quando põe o pé na estrada, quando leva a vida sem buscar a salvação, quando empreende sua viagem encarnada sem objetivo particular, e então encontra o outro viajante, a quem reconhece pelo som. Lawrence dizia ser este o novo messianismo ou o aporte democrático da literatura americana: contra a moral européia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que a alma só se realiza pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios. A comunidade dos celibatários é a do homem qualquer e de suas singularidades que se cruzam: nem individualismo nem comunialismo.

Eu não queria terminar esse percurso tão ziguezagueante por uma conclusão excessivamente assertiva, pois estamos num momento tão complexo que a assertividade pode tornar-se ela mesma um ingrediente fundamentalista a mais que se conjuga com tantos outros, como o da religião do capital ou o capital das religiões. A experimentação é sempre mais hesitante, feita de lacunas e disparidades, colapsos e retomadas, desfalecimentos, gagueiras, devires insólitos, acontecimentos tanto mais imponderáveis quanto menos se dão a ver segundo os limiares de percepção consagrados por uma sociedade do espetáculo. Talvez eu queira dizer apenas o seguinte, à guisa de encerramento: Deleuze chega a afirmar que o que lhe importa não é o futuro de revolução, mas o devir-revolucionário das pessoas, os espaços-tempo que elas são capazes de inventar, os acontecimentos que se ensejam por toda parte. De modo que, como diz ele, ser de esquerda não significa uma pertinência partidária, mas uma questão de percepção. Quando pensam em maio de 1968, Deleuze e Guattari se referem a uma mutação na sensibilidade, na percepção social, em que subitamente tudo aquilo que era suportado cotidianamente se tornou intolerável, e inventaram-se novos desejos que antes pareciam impensáveis. Uma mutação social é uma redistribuição dos afetos, é um redesenho da fronteira entre aquilo que uma sociedade percebe como intolerável e aquilo que ela considera desejável. Não me parece que o teatro seja estranho a essa tarefa, que é da sensibilidade, da percepção, da invenção de possíveis, de formas de associação inusitadas, de modos de existência. É um desafio estético, ético, político, subjetivo. Mas que não se dá de forma etérea nem abstrata. Às vezes precisamos de dispositivos muito concretos que sustentem tais experimentações, tais acontecimentos. Estar à altura do que nos acontece é a única ética possível, estar à altura dos acontecimentos que se esteja em condições de propiciar, nos mais diversos campos, nas mais diversas escalas, moleculares e molares, recusando o niilismo biopolítico e suas formas cada vez mais insidiosas e capilares. A esses dispositivos vários, dos quais um certo teatro faz parte, eu chamaria de dispositivos biopolíticos, em que está em jogo uma potência de vida, uma biopotên
O QUE PODE UM BANDO?